sexta-feira, 11 de novembro de 2011

O Diário da minha existência

Jaz aqui. Nada mais houve na minha vida para além de mim e deste diário.


Foi um terrível azar cósmico que me trouxe até aqui: trouxe-me sem antes me perguntar se eu queria vir. Trouxe-me e deixou-me sozinho com o meu próprio corpo. Trouxe-me apenas. Varreu-me do nada de mim, gás, pó, excrementos, e esculpiu-me, em formas curvilíneas, numa pirâmide de ossos e sangue e vértices miseráveis.


E existi só. Sentei-me em frente a mim e observei a minha respiração descontínua, o amontoado de fios e cartilagens e tendões que se entrecruzam e ligam para suportar este corpo tão pesado de mim. Ouvi-me. Toquei nas minhas mãos firmes de crueldade e senti a vida toda a passar ali sem pressa.


Fui um corpo morto de mim com desejos alheios do mundo. Passei-me pela terra, corri-me da humanidade, parei-me em frente à quietude perturbante. Falsifiquei notas, roubei um ladrão, peguei fogo a um piromaníaco, prostitui uma puta, fumei um rastafari, burlei um vigarista e matei um assassino.


Sustentei-me sempre dos bolsos alheios daqueles que foram trazidos pela sorte cósmica. Nunca precisei de ordenar o meu corpo para que ele se mexesse, nem para procurar o sexo em esquinas diferentes, nem para acender outro cigarro, nem para voltar a ouvir um piano.


E deste lado de cá continuo a observar-me. E as formas curvilíneas continuam lá, um pouco mais arredondadas e doentes. As minhas mãos estão trémulas e gastas de tantas tentativas de sobrevivência. Insisti-me mais uma vez, mas a minha voz está fraca. Os ossos estão quebráveis e o sangue secou de vez.


Visto-me o corpo todo de uma última beleza erótica, enfrento-me e mato a alma deste desalmado.

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